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093/23 - Carro elétrico: uma aposta duvidosa

Carro elétrico: uma aposta duvidosa

 

Além de não serem a solução para os problemas ambientais do planeta, esses veículos são inacessíveis para a maioria dos consumidores.

Dezenas de milhares de carros abandonados. Enferrujados. Suas pinturas perdendo a tonalidade. Cercados por ervas daninhas. Carcaças que se tornaram refúgio de animais silvestres. E, para piorar, baterias de lítio — com seus componentes altamente tóxicos — em fase de decomposição.

Esse espetáculo sombrio é visto atualmente em um cemitério de automóveis elétricos localizado em um terreno baldio na cidade de Hangzhou, perto de Xangai, na China. O local é ponto de descarte para um enorme número de veículos produzidos por montadoras chinesas.

As necrópoles de carros movidos a eletricidade começaram a aparecer em fotos e vídeos na internet. Algumas foram desocupadas pelas autoridades locais para evitar a imagem negativa desse tipo de veículo. Mas continuam sendo uma representação impressionante dos excessos de um setor que cresceu graças a generosos subsídios públicos e criou uma gigantesca bolha de oferta de produtos que, num curto período de tempo, se revelaram obsoletos. Aquilo que deveria ser a vanguarda do “transporte limpo” se tornou um macabro monumento ao desperdício.

Grande parte desses carros elétricos foi abandonada depois de poucos meses de uso. Por causa da falência das fabricantes, ou à medida que as montadoras lançavam veículos mais modernos e com maior autonomia de condução, os antigos foram sendo substituídos. Como era praticamente impossível vendê-los como usados — justamente por causa da falta de peças ou da baixa autonomia —, acabaram criando enormes lixões de ferro e lítio a céu aberto.

Agora os veículos elétricos estão prestes a desembarcar no Brasil em peso. A chinesa BYD, maior produtora de veículos a bateria do mundo, anunciou a construção de uma fábrica em Camaçari (BA), na antiga planta da Ford, abandonada pelos norte-americanos em 2021.

Além da euforia do mercado com a novidade, muitos analistas se questionam se os carros elétricos são a melhor solução para a mobilidade individual no Brasil. Ou se os custos — inclusive ambientais — continuarão muito superiores aos ganhos. Fazendo desses veículos apenas instrumentos de propaganda ambientalista e de estratégia geopolítica.

 

Negócio da China

A indústria dos carros elétricos mundial surgiu e sobrevive única e exclusivamente na base de subsídios públicos cavalares. Diferentemente da indústria automotiva tradicional, sem dinheiro do governo ela não se sustenta.

Entre 2016 e 2022, o governo chinês gastou mais de US$ 57 bilhões para estimular o surgimento de uma indústria local de carros elétricos. Um valor cerca de cinco vezes maior do que o governo dos Estados Unidos gastou no mesmo período com o setor, e que não inclui incentivos dos governos provinciais e locais.

Os recursos colossais permitiram a abertura de centenas de fabricantes de automóveis eletrificados no país. Alguns se tornaram players de mercado. Outros não passaram de meras startups que se lançaram na aventura, não obtiveram o sucesso esperado e contribuíram para criar os enormes cemitérios de veículos a bateria.

Com tanto dinheiro na mesa, a China se tornou líder mundial no setor. Em 2022, produziu cerca de 6 milhões de veículos elétricos e híbridos. A previsão para 2023 é de cerca de 9 milhões de unidades. Existem aproximadamente cem montadoras do tipo no país asiático. E um em cada três carros novos vendidos no mercado local é elétrico. Com isso, a China concentra hoje 60% de toda a frota elétrica do planeta.

“Há cerca de uma década, a China fez uma escolha clara: optou pelo elétrico para tentar criar uma indústria automotiva própria”, explica Ricardo Bastos, presidente da Associação Brasileira de Veículos Elétricos (ABVE). “Diferentemente dos japoneses ou dos coreanos, que passaram décadas tentando imitar os carros a combustão europeus ou americanos, os chineses simplesmente decidiram pular essa fase e foram direto para o carro movido a bateria. Com isso, atingiram um nível de sofisticação e excelência superior aos concorrentes.”

O problema é que a China tem hoje uma capacidade produtiva muito maior que a demanda interna. Por isso, as montadoras chinesas estão de olho em outros mercados para escoar a produção. Um dos principais é o Brasil.

 

A chegada do dragão

A chegada da BYD ao Brasil marcou a primeira abertura de uma planta da empresa chinesa no exterior.

“A BYD vai produzir exclusivamente veículos elétricos, sem combustão de nenhum tipo”, afirma Alexandre Baldy, ex-deputado federal e ex-ministro das Cidades do governo Jair Bolsonaro, agora presidente do conselho da BYD no Brasil. “Queremos transformar o Brasil em um hub de exportação para a América do Sul e outras regiões do mundo.”

A BYD disputa com a norte-americana Tesla a liderança mundial dos veículos elétricos. A empresa quer fabricar no Brasil 150 mil exemplares por ano em 2025, podendo chegar a 300 mil em um curto período de tempo.

O mercado brasileiro, contudo, é muito menor do que o chinês. Para se ter uma ideia, em cada um dos cemitérios de carros elétricos da China são abandonados mais veículos do que a totalidade das vendas dessa categoria no Brasil durante um ano inteiro.

Segundo dados da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), em 2022 foram vendidos no Brasil 8.440 veículos elétricos, ante cerca de 2 milhões de modelos tradicionais — ou 0,4% do total. De janeiro a agosto modelos tradicionais — ou 0,4% do total. De janeiro a agosto deste ano, foram comercializados menos de 6 mil carros elétricos, ante cerca de 1,5 milhão de automóveis tradicionais. Mesmo com um crescimento de mais de 100% ao ano, será necessária mais de uma década para absorver toda a produção prevista pela BYD. Sem contar a concorrência de outros fabricantes.

Mas para a BYD é apenas uma questão de tempo. Segundo a fabricante, o pátio automotivo brasileiro vai se eletrificar rapidamente. “Estamos abrindo o mercado”, acredita Baldy. “Criando uma rede de concessionárias expressiva e robusta para dar suporte para as compras. Não temos dúvida de que o futuro do Brasil serão os carros elétricos.”

Apesar do otimismo, existe uma série de questões que podem colocar em xeque a previsão. E o preço elevado é só uma delas.

 

Revolução para ricos

Os carros elétricos são muito mais caros do que os carros tradicionais. Hoje, o modelo mais barato da BYD chega a custar quase R$ 150 mil. Mesmo se a montadora trouxer para as estradas brasileiras um modelo mais econômico, dificilmente conseguirá baixar o preço para menos de R$ 100 mil.

Num país como o Brasil, onde a renda média é de cerca de R$ 1,5 mil, comprar um veículo desse valor é praticamente impossível para o cidadão comum. Não só pelo preço de compra, mas pelos custos adicionais, como IPVA, manutenção e seguro, que acabam se tornando mais caros, pois são proporcionais ao valor do veículo.

Esse é um problema comum a muitos outros países. Não por acaso, o CEO da Renault, Luca de Meo, chegou a declarar que “os carros elétricos são uma revolução para os ricos. São necessárias fontes críveis que expliquem suas vantagens e seus limites”.

“No Brasil, do ponto de vista econômico, não faz muito sentido comprar um carro elétrico hoje”, observa o executivo de uma grande montadora europeia que preferiu não se identificar. “Se colocar os custos e os benefícios na ponta do lápis, é evidente que a conta não fecha. Essa é uma tendência para moradores de grandes cidades, com poder aquisitivo elevado e consciência ambiental. Ou que querem parecer descolados.”

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Os carros elétricos precisam de uma rede de infraestrutura gigantesca. A principal demanda são pontos de carregamento espalhados pelas rodovias. A pergunta é: quem vai pagar a conta? 

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A mesma realidade pode ser vista na Europa, onde o preço dos carros elétricos é bastante elevado, e as vendas só ocorrem graças a generosos incentivos fiscais. Dessa forma, os governos europeus acabam realizando políticas economicamente regressivas, favorecendo os mais ricos.

 

Os carros serão para poucos

Aparentemente, o verdadeiro objetivo dessa “revolução dos Aparentemente, o verdadeiro objetivo dessa “revolução dos ricos” não é mudar o paradigma do setor automotivo, mas limitar a mobilidade particular. “Já que o problema do aquecimento global nunca poderá ser resolvido substituindo o motor endotérmico com aquele elétrico, a única solução é reduzir o número de carros particulares em 75%, pelo menos nas grandes cidades”, concluiu um relatório recente do Fórum Econômico Mundial de Davos.

Ou seja, a cada quatro carros, três deverão desaparecer. O automóvel voltará a ser um artigo de luxo só acessível para poucos privilegiados. E isso já está acontecendo em várias cidades europeias, onde uma série de restrições cada vez mais duras estão sendo impostas à população. Entre elas, a proibição de ingressar nos centros urbanos com carros poluentes. Ou a limitação da velocidade permitida a 30 quilômetros por hora.

 

Tensões entre montadoras

No Brasil começam a surgir tensões entre as montadoras tradicionais. Principalmente contra a chegada de carros elétricos chineses.

A Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) está pressionando o governo para que acabe com a isenção de impostos sobre a importação de veículos elétricos. Márcio Leite, presidente da entidade, criticou a “invasão de produtos asiáticos, principalmente da China” na América Latina.

“Investem para montar 100 mil veículos, mas vão trazer 500 mil”, afirma Leite, salientando que nenhuma montadora no Brasil vende tantos veículos por ano. A BYD já é líder de vendas no Brasil, com mais de 50% do total de carros elétricos comercializados no país. Todos importados da China.

A União Europeia (UE) anunciou medidas contra os fabricantes chineses de carros elétricos, acusando Pequim de dumping (comercialização de produtos a preços abaixo dos custos de produção com o objetivo de eliminar a concorrência). “Os mercados globais estão inundados com carros chineses a preços mantidos artificialmente baixos por subsídios públicos maciços”, acusa Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia. “Isso distorce a concorrência no nosso mercado.”

 

Quem pagará a infraestrutura?

Além disso, os carros elétricos precisam de uma rede de infraestrutura gigantesca. A principal demanda são pontos de carregamento espalhados pelas rodovias. A pergunta é: quem carregamento espalhados pelas rodovias. A pergunta é: quem vai pagar a conta?

Na Europa, os governos estão gastando bilhões para construir uma rede de carregadores elétricos espalhados em todo o território nacional. Com uma área de pouco mais de 350 mil quilômetros quadrados, a Alemanha tem cerca de 60 mil pontos de carregamento. No Brasil, são apenas 3,2 mil para atender a um país continental com mais de 8,5 milhões de quilômetros quadrados. Para que os carros elétricos se tornem um meio de transporte viável, seriam necessários no mínimo 150 mil eletropostos de recarga espalhados por todo o território brasileiro. Um custo de R$ 14 bilhões que alguém vai ter que pagar.

A autonomia dos carros elétricos, de cerca de 300 quilômetros, permite atravessar de ponta a ponta quase todas as nações do Velho Continente. No Brasil, isso é impossível.

Sem contar que existe o risco de o sistema elétrico nacional não comportar uma demanda tão grande de energia elétrica. A Agência Federal das Redes Elétricas alemã (Bundesnetzagentur) já avisou que o entusiasmo com os carros elétricos pode deixar bairros inteiros de grandes cidades na escuridão. Por causa do excesso de recargas, a maioria realizada durante o período noturno, a operadora elétrica da Alemanha do sul, TransnetBW, pediu oficialmente para os cidadãos reduzirem o consumo energético durante a noite e não excluiu um racionamento a partir de janeiro de 2024.

 

Problemas ignorados

Além disso, começam a surgir denúncias sobre defeitos e problemas apresentados por carros elétricos. A Reuters revelou a existência na Tesla de uma equipe especializada em “cancelar qualquer reclamação por parte dos clientes”. A empresa de Elon Musk teria divulgado nos Estados Unidos dados mais otimistas do que a realidade em relação à autonomia das baterias, que teria sido muito menor — até mesmo a metade — do que a declarada. A Tesla teria criado algoritmos no painel de seus veículos para alterar as informações apresentadas para seus clientes.

 

Os usuários já estão sentindo na pele os efeitos da situação. Na Noruega, a insatisfação de proprietários de veículos da Tesla os levou a iniciar uma greve de fome para chamar atenção sobre os problemas dos carros elétricos e a falta de atenção da montadora norte-americana. Várias celebridades aderiram, como o ator e escritor Erlend Mørch. A resposta de Musk veio pelo Twitter, sarcástica: “Aconselhado por um bom amigo, faço pelo Twitter, sarcástica: “Aconselhado por um bom amigo, faço jejum periodicamente. Me sinto muito melhor”.

Não é surpreendente que na Holanda, um dos centros da transição verde, uma pesquisa da VZR tenha mostrado que 25% dos proprietários de carros elétricos querem voltar para os motores térmicos. Na França, cerca de 50% da população também não quer um carro elétrico. Ceticismo similar na Alemanha e na Noruega. As razões para esse descontentamento são as mesmas em todos os países: longo tempo de recarga e preocupação com a autonomia.  

Teoricamente, as baterias dos carros elétricos duram cerca de 35 anos e, depois disso, o plano é usá-las como geradores de emergência para edifícios comerciais e residenciais. Acontece que isso nunca foi feito, já que os carros elétricos não atingiram nem a maioridade. Na prática, ainda não se tem a menor ideia do que será feito com todo esse lixo de lítio, níquel e cobalto.

 

Por que não o híbrido flex?

Muitos especialistas do setor automotivo começam a questionar se, pelo menos para o Brasil, a melhor solução para uma mobilidade sustentável não seria o híbrido flex, ou seja, movido a etanol e a eletricidade — e não o carro 100% elétrico.

Um recente estudo feito pela Stellantis, dona das marcas Fiat, Jeep, Peugeot e Citroën, mostrou que carros movidos a etanol no Brasil poluem menos do que os modelos elétricos. Isso vale especialmente na Europa, onde a matriz energética é em grande parte baseada no carvão, gás ou petróleo. Ou seja, para recarregar o carro elétrico, o europeu acaba produzindo mais poluição na fonte.

Não por acaso, o CEO da Stellantis, o português Carlos Tavares, chegou a declarar que “o brasileiro não precisa de carro elétrico”. Sem contar que há uma questão de domínio tecnológico nesse âmbito, uma vez que as fabricantes chinesas não sabem produzir carros híbridos flex.

“Cada empresa oferece os carros que sabe produzir”, explica um executivo do setor automotivo. “Os chineses não detêm a tecnologia de híbrido flex, por isso insistem em um carro exclusivamente elétrico. Mas eles querem aprender a fazer isso. Esse é um dos motivos pelos quais vão construir um centro de pesquisa e desenvolvimento em Salvador. Quem sabe até para exportar essa tecnologia híbrido flex, junto com o etanol, para outros países.”

 

Faltarão baterias

Por último, o mercado se prepara para uma possível escassez de lítio, fundamental para a produção de baterias de automóveis elétricos. Cada uma requer cerca de 8 quilos (17 libras) de lítio, além de cobalto, níquel e outros metais. No ano passado, a produção global de lítio foi de cerca de 143 mil toneladas. Isso significa que o mundo consegue produzir, no máximo, cerca de 16 milhões de baterias de carros elétricos por ano. Em 2022, contudo, foram comercializados quase 70 milhões de automóveis.

Segundo a Agência Internacional de Energia (AIEA), um carro elétrico requer seis vezes mais materiais raros do que um carro tradicional. E 70% desses minerais vêm da China e do Congo. A eletrificação maciça dos veículos deixaria o mundo dependente de um regime comunista e de um país africano cronicamente instável desde sua independência, em 1960.

Isso tudo terá uma única consequência: custo maior para o consumidor. Além de não resolver problemas ambientais.

 

 

Fonte: Revista OESTE

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